domingo, 26 de fevereiro de 2012

madrugada

Era tarde e a noite resistia em terminar e se deixar dominar pela claridade tirana do dia. Eu insistia em idolatrar a madrugada, por maior que fosse o ar de melancolia e solidão que me transmitisse. Gostaria de perpetuar aquele momento de eterno silêncio e profunda escuridão. O tempo passava sereno, dava-me chance de pensar sem ser interrompida por ruídos, falas, perguntas, gritos histéricos. Arquivei os pensamentos em pastas separadas por ordem de importância, esquematizei algumas ideias e as coloquei enfileiradas.
Montei uma espécie de mapa cerebral, no qual cada coisa tinha uma legenda, às vezes o transformava em anamorfoses, às vezes priorizava o modelo de Peters, ou de Mercartor, dependia tudo do conteúdo e da disposição de pensar. Poderia ficar ali o resto da vida, sentada no chão, encostada preguiçosamente no sofá, apenas pensando. O que me impedia era saber que o sol apareceria e minha tranquilidade teria findado.
Mas não enquanto estava ali, não. Ainda não. Tinha mais algumas horas de infinitos heterônimos, inacabáveis estórias e atormentadas lembranças.
Algo na madrugada me encanta, deixa-me frágil de um jeito mágico e sincero. Sinto como se fosse eu mesma, olhando-me de fora. Simultaneamente sinto que sou intocável, inabalável e inatingível. Como se... Como se meus maiores inimigos fossem minha imagem refletida no espelho e alguns pensamentos indisciplinados que se negam a serem arquivados e dispostos numa ordem sequencial.
Esse ser atônito me completa, por mais contraditório que possa parecer, a madrugada me faz bem e feliz, feliz de um jeito real e não iludido. Feliz por me sentir contraditoriamente bem.
Ah, "insustentável leveza do ser".

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